A gordura do leite, colesterol e calorias

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A gordura do leite, por ser predominantemente saturada, aumenta os níveis de colesterol-LDL no sangue e, por consequência,  o risco de doenças cardiovasculares como infarto e derrame. Além disso, assim como as gorduras em geral, a gordura do leite apresenta teor energético superior ao dos carboidratos e das proteínas (9 kcal/g vs. 4 kcal/g), de forma que a sua ingestão eleva o risco de sobrepeso e obesidade devido ao maior consumo de calorias. Além do mais, ninguém discute a velha máxima de que “você é o que você come”, ou seja, a gordura engorda. Tudo isso está mais do que comprovado, concordam?

É com base nas afirmações acima que a comunidade médica e os órgãos de saúde pública de diversos países têm recomendado, por longos anos,  a ingestão de leite e produtos lácteos com teores reduzidos ou isentos de gordura para reduzir o risco de doenças cardiovasculares e obesidade. Será que essas afirmações são comprovadas pelos estudos científicos mais recentes e pelos avanços do conhecimento no campo da nutrição humana?

Vejamos abaixo, de maneira resumida, o que nos dizem os principais estudos sobre o tema, publicados pelos melhores grupos de pesquisa do mundo:

1)  A gordura do leite de vacas, cabras, ovelhas e búfalas é a fonte de gordura mais complexa da dieta humana, com mais de 400 tipos de ácidos graxos, alguns exclusivos, como é o caso do ácido butírico, um composto com propriedades benéficas à saúde. 

Essa natureza complexa e singular da gordura do leite é consequência das particularidades do sistema digestivo e do metabolismo destes animais. Embora os ácidos graxos saturados sejam maioria (60-70% do total), os mesmos diferem amplamente quanto ao tamanho e forma da cadeia. Essa peculiaridade da gordura do leite é muito importante do ponto de vista nutricional, uma vez que ácidos graxos saturados diferentes apresentam efeitos biológicos distintos, incluindo sobre biomarcadores de risco cardiovascular como colesterol-LDL, colesterol-HDL, triglicerídeos, etc. Em outras palavras, é preciso levar em conta o efeito conjunto desses ácidos graxos saturados para poder predizer o efeito da ingestão da gordura do leite sobre o risco de doenças cardiovasculares. Apenas para exemplificar, os ácidos graxos saturados encontrados em maiores quantidades na gordura do leite são os ácidos palmítico, mirístico e esteárico. Os dois primeiros aumentam a concentração plasmática de colesterol-LDL (um dos inúmeros biomarcadores de risco cardiovascular) quando substituem energeticamente carboidratos na dieta, ao passo que o ácido esteárico não apresenta efeito sobre esse biomarcador. No entanto, os ácidos palmítico e mirístico também aumentam os níveis de colesterol-HDL, um efeito considerado benéfico à saúde cardiovascular.  A história toda fica ainda mais interessante quando se descobre que o colesterol-LDL está presente no sangue em duas formas principais: como partículas pequenas e densas, e como partículas grandes e leves. As últimas, que são as que aumentam predominantemente em resposta à ingestão de gorduras saturadas, apresentam baixo potencial aterogênico por serem menos sujeitos à oxidação. 

2)   Alguns estudos que revisaram o tema têm mostrado que o consumo de produtos lácteos com teores regulares de gordura (comumente referidos como “full fat” nos artigos) não aumentam o risco de doenças cardiovasculares, e estão inversamente associados com o risco de diabetes do tipo-2. Esses resultados são consistentes com uma série de relatos na literatura indicando que a ingestão de produtos lácteos “full fat”, embora normalmente resulte em aumento dos níveis de colesterol-LDL, também estão associados à elevação do colesterol-HDL, redução dos triglicerídeos e melhora da sensibilidade à insulina. Estes achados indicam, um menor risco de síndrome metabólica, que é reconhecidamente um dos principais fatores de risco para o desenvolvimento de diabetes do tipo 2 e doenças cardiovasculares. 

3)  Uma recente revisão de estudos clínicos mostrou que a ingestão de produtos lácteos, especialmente os fermentados, exerce uma ação anti-inflamatória em indivíduos não alérgicos à proteína do leite, sendo essa resposta observada tanto em indivíduos consumindo produtos “low fat” quanto “full fat”. Como uma inflamação crônica de baixo grau é, reconhecidamente, um dos fatores envolvidos no desenvolvimento de diversas doenças crônicas, os resultados dessa revisão junto às evidências crescentes indicando que a ingestão de produtos lácteos, independentemente do seu teor de gordura, não aumenta o risco de doenças cardiovasculares.

4)  Outro aspecto importante a ser considerado nos estudos de nutrição humana é que a gordura saturada não é ingerida isoladamente, mas como parte de uma matriz alimentar que contém outros tipos de ácidos graxos (ex.: monoinsaturados, poliinsaturados e outros nutrientes (ex.: proteína, minerais, etc.), cujas interações vão determinar, no final das contas, o efeito de um determinado alimento sobre a nossa saúde. No caso dos produtos lácteos, esse efeito é comumente referido como “efeito da matriz láctea”. A gordura do leite, por exemplo, é fonte de diversos ácidos graxos bioativos com propriedades benéficas à saúde, como o ácido oleico, o ácido linolênico, o ácido vacênico e o ácido rumênico. O ácido oleico, por exemplo, principal componente do azeite de oliva (um dos principais ingredientes da aclamada “dieta do Mediterrâneo”), representa 20-25% da gordura do leite, informação que infelizmente parece ser desconhecida por grande parte dos médicos e nutricionistas. Digno de nota, os teores desses ácidos graxos bioativos podem ser aumentados, em maior ou menor grau, por meio da manipulação da dieta dos animais, e essa tem sido uma linha ativa de pesquisa na Embrapa Gado de Leite na última década, com resultados promissores tanto em estudos com modelo animal quanto em humanos. 

A gordura do leite é ainda fonte natural de outros compostos de interesse à saúde como carotenóides, tocoferóis e alguns componentes da membrana do glóbulo de gordura. Esses últimos, embora representem uma pequena fração da gordura do leite, apresentam importância nutricional muito maior do que se imaginava. Nos estudos em que foram avaliados os efeitos de diferentes matrizes lácteas sobre o risco de doenças cardiovasculares e diabetes do tipo 2, os resultados observados apontam para efeitos notadamente benéficos dos produtos fermentados como iogurtes e queijos, sugerindo que ao menos parte do efeito observado pode ser atribuído à modulação da microbiota intestinal, um área de pesquisa que tem atraído grande interesse da comunidade científica nos últimos anos.

5)     Em relação à obesidade, as evidências acumuladas nos últimos anos indicam que nem todas as calorias são iguais. Em outras palavras, a ingestão de um mesmo número de calorias a partir de dietas com diferentes composições nutricionais exercem efeitos diferentes sobre o acúmulo de gordura corporal. Por exemplo, uma dieta com 2.500 kcal baseada principalmente em alimentos com elevado teor de gordura parece ser bem mais eficaz em prevenir um ganho excessivo de peso ao longo do tempo, do que uma dieta com o mesmo número de calorias provenientes de alimentos ricos em carboidratos refinados e açúcar. Isso ocorre porque diferentes nutrientes afetam de diversas formas as vias metabólicas de regulação da fome/saciedade, a lipogênese nos tecidos, a microbiota intestinal e o gasto energético. Portanto, não são surpreendentes os resultados de diversos estudos indicando um menor risco de obesidade em indivíduos consumindo leite e produtos lácteos “full fat”, especialmente levando-se em conta que a indústria normalmente adiciona açúcar no lugar da gordura que foi removida durante a fabricação dos produtos “low fat” e “fat free”. Além disso, a dieta do Mediterrâneo, que contém um teor relativamente elevado de gordura total (30-35% das calorias ingeridas) e as dietas “low carb”, (com pouco carboidrato), ricas em gordura, também têm se mostrado eficazes na perda ou prevenção do ganho de peso, mesmo em condições de consumo irrestrito de calorias.

O que podemos esperar?

Os estudos científicos realizados na última década não comprovam as afirmações descritas no início desse artigo, que constituem a fundamentação das recomendações ainda vigentes de se evitar o consumo de leite e produtos lácteos com teores regulares de gordura para reduzir o risco de doenças cardiovasculares e obesidade. Os estudos de metabolismo e as análises de estudos clínicos controlados têm mostrado que, na verdade, a suposta associação entre a ingestão de gordura saturada e o risco de doenças cardiovasculares não é tão simples como se imaginava, e que considerar a obesidade como uma mera questão de balanço calórico pode ser não apenas equivocado, mas ineficaz do ponto de vista de prevenção ou tratamento. Estas evidências, produzidas pelos principais grupos de pesquisa do mundo, não podem continuar a ser desconhecidas ou ignoradas nos consultórios e, principalmente, na elaboração das políticas públicas de saúde.